segunda-feira, 29 de agosto de 2011

DUELO

                                                               Kandinsky

        Linhas negras torturadas se contorcem. Dançam ao som de uma música surda orquestrada pelo colorido empalidecido que se sobrepõe.
        Apenas alguns sinais da personalidade sanguinária do vermelho se fazem presente. Desvitalizada, se rende à força do negro que domina a cena. E ele, perseguido pelo escuro do azul, que o contorna e sufoca, tenta escapar por finas linhas correndo para dentro de um amarelo morto. O verde esmorecido, sem oxigênio é relegado às bordas.
        Nasce no centro um cogumelo tetro, rajado, como a bomba de Hiroshima que paira num universo de cores, mas sem luz.

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Sinais

                                     

      A lua dourada imperava no céu negro. Estava convidativa. Mas ela não estava afim. Conhecia bem a rotina. O que imperava no universo dos dois, era o desejo dele.
      De nada adiantava ela vestir os pijamas velhos e surrados. De nada adiantava se encolher no seu canto da cama virada para parede e fingir estar dormindo. Ele não percebia nenhum dos sinais. Contudo, rejeitá-lo, sempre lhe causava um grande problema. No dia seguinte, teria de aguentar as mais diversas manifestações de descontentamento, portas batendo, grosserias.
      Mas um sinal ele conhecia bem. Foi quando ela olhou para o resto de vinho tinto que havia sobrado na taça ao lado da cama, bebeu num gole só. Sem virar-se, desceu o pijama até os joelhos. Dois minutos era o tempo que ele precisava. No outro dia nascia uma nova mesma noite, independente da lua.

terça-feira, 9 de agosto de 2011

Zygmunt Bauman e Edgar Morin


Resumo entrevista Zygmunt Bauman e conferência Edgar Morin

fornecido pela UNIMED POA



A contemporaneidade na visão de Zygmunt Bauman e Edgar Morin

Por Sonia Montaño

A noite do Fronteiras do Pensamento do dia 8 de agosto foi palco de um encontro
histórico com dois dos maiores pensadores do presente: o sociólogo polonês Zygmunt
Bauman e o antropólogo e filósofo francês Edgar Morin. O primeiro, através de um
vídeo gravado com exclusividade para o Fronteiras na sua residência em Londres no
dia 25 de julho de 2011. O segundo, com sua presença no palco trazendo provocantes
análises e um convite para a esperança: a humanidade pode estar num período de
metamorfose, gestando um mundo melhor.
Zygmunt Bauman: a pós-modernidade é passagem ou início de uma era?
O sociólogo polonês abriu sua entrevista falando sobre a dificuldade de dizer qual, no
século 20, foi a mais importante e mais duradoura herança para as próximas
gerações. O que aconteceu no século 20 foi uma passagem de toda uma era da
história mundial, ou seja, da sociedade de produção para a sociedade de consumo.
Por outro lado, houve os processos de fragmentação da vida humana. “Quando eu era
jovem, isto é, séculos atrás, ficamos impressionados com Jean-Paul Sartre, que nos
disse que precisávamos criar o projet de la vie, projeto de vida. Temos que
selecionar um projeto de vida, temos que prosseguir passo a passo, de forma
consistente, ano após ano, chegando cada vez mais próximo desse ideal. Agora,
conte isso aos jovens de hoje e eles rirão de você”, enfatizou Bauman. Para ele, o
projeto de vida hoje, de uma vida inteira, é algo difícil de acreditar. A vida é
dividida em episódios. Não era assim no início do século 20.
As sociedades foram individualizadas. Em vez de se pensar em termos de a qual
comunidade se pertence, a qual nação se pertence, a qual movimento político se
pertence etc., tendemos a redefinir o significado de vida, o propósito de vida, a
felicidade na vida para o que está acontecendo com uma própria pessoa, as questões
de identidade, que têm um papel importante hoje no mundo. “Você tem que criar a
sua própria identidade. Você não a herda. Você não apenas precisa fazer isso a partir
do zero, mas tem que passar sua vida, de fato, redefinindo sua identidade”, explicou
o professor.
O fim da pós-modernidade?
Houve no século 20 muitas mudanças, não apenas a passagem do totalitarismo para a
democracia, mas muitas outras coisas. No final do século 20, houve a passagem do
Estado social para o Estado neoliberal, em que cada indivíduo tem que encontrar
soluções individuais para problemas produzidos socialmente. “Isso vai durar ou não?
Vamos voltar ao hábito de pensar em termos de toda a sociedade, o nosso país,
Brasil, a comunidade à qual pertencemos, o nosso bairro, a nossa cidade? Essa é uma
grande pergunta. É muito difícil dizer se o neoliberalismo é apenas um fenômeno ou
se é o início de uma era”, perguntou o sociólogo. A mesma pergunta Bauman formula
em relação à pós-modernidade, tendo grandes dificuldades para dizer se foi o início
de uma nova forma de vida, que vai durar séculos, ou se é um período de transição,
de um tipo de ordem social para outro tipo de ordem social. “Quando você está num
processo de transição, fica muito difícil imaginar outro tipo de solução estável, um
acordo de convivência humana. Mas isso vem mais cedo ou mais tarde. E até mesmo
essa pergunta não dá para responder”, disse o entrevistado.
A interdependência e o problema ecológico
Para Bauman, duas questões seriam irreversíveis. Teríamos multiplicado, nós, a
humanidade no planeta, as conexões, as relações, as interdependências, as
comunicações, espalhadas em todo o mundo. Estamos agora numa posição em que
todos nós dependemos uns dos outros. “O que ocorre na Malásia, quer você saiba ou
não, sinta ou não, tem uma tremenda importância nas perspectivas de vida dos
jovens em São Paulo. E vice-versa. Essa é a primeira vez na história em que o mundo
é realmente um único país, em certo sentido”, explicou o sociólogo. Isso coloca na
agenda o problema, não de construir um Estado-nação, não de construir uma
comunidade local de qualquer tipo, mas de construir uma comunidade da
humanidade.
A segunda questão é que, aproximadamente após 300 anos de história moderna,
nossos antepassados decidiram assumir a natureza sob a gestão humana na esperança
de que eles fariam com que a natureza obedecesse absolutamente às necessidades
humanas e teriam pleno controle do que acontecesse no mundo. Agora, isso acabou,
porque, no resultado dos nossos próprios sucessos, as nossas respostas para os nossos
sucessos, o desenvolvimento da tecnologia moderna, a eficiência, ou a nossa
capacidade de produzir cada vez mais, alcançar todos os tipos de recursos naturais
do planeta, no resultado de todo esse sucesso da ciência e da sociologia, chegamos
muito perto dos limites da suportabilidade do planeta.
O Estado e o poder
O poder teria evaporado do nível do Estado-nação para o que Manuel Castells,
sociólogo espanhol, chama de “espaço de fluxos”. De fluxos significa que há
movimentação ilimitada de capitais, de planos de investimentos, de commodities, de
informações, de terrorismo, de comércio de armamentos, e também de
criminalidade etc. Então, o poder, a capacidade de fazer coisas, frequentemente fica
fora do alcance da política local. E por política local não se faz referência apenas à
política municipal, pois a política do Estado, agora, nestes tempos de globalização, é
uma política local.
Ele não pode impedi-los, não pode controlá-los, não pode forçá-los a se comportarem
apropriadamente, porque a política até agora continua local. Existe a política
brasileira, a política chilena, a política argentina, a política francesa etc. Às vezes,
há alguns começos de política europeia, mas muito pouco. Normalmente, ela é
dividida em francesa, alemã, italiana etc. Nem mesmo é internacional, é
intergovernamental, interministerial. Porém, realmente global, que seja vinculante
para todo o globo, isso não existe.
A democracia
O Estado não tem poder suficiente para manter todas as promessas que os Estados,
50 anos atrás, fizeram aos cidadãos. E essa foi a “era de ouro” da democracia. Nos 30
anos do pós-guerra, ocorreu uma proliferação e florescimento da democracia ideal.
Agora, a democracia está em decadência. Cada vez menos pessoas estão realmente
convencidas de que seja uma coisa boa. E têm dúvidas a respeito da qualidade da
democracia. Isso porque o Estado relativamente sem poder consegue oferecer cada
vez menos aos cidadãos. Ulrich Beck, um escritor bastante influente e sociólogo
alemão, aponta que, na sociedade contemporânea, espera-se que os indivíduos
encontrem individualmente, usando inteligência individual e recursos individuais,
soluções individuais para problemas comuns e produzidos socialmente. “E, se esse for
o caso, por que eu deveria me preocupar com os governos, por que eu deveria me
preocupar com as eleições, por que eu deveria me preocupar com as democracias
adequadas? Realmente, não há motivo. Esse é o perigo”, alertou Bauman.
Indivíduo
Para o sociólogo, a maior aproximação contemporânea da Ágora, do lugar onde a
democracia foi feita e protegida, são os talk shows televisivos. “É onde as massas
assistem, participam, telefonam, enviam perguntas, mensagens etc. Algo semelhante
ao que se fazia na antiga Ágora. Ao olharmos para isso, vemos que eles não estão
discutindo os nossos interesses compartilhados, não estão discutindo o bem-estar da
sociedade, eles não estão discutindo sobre o que precisa ser feito para abolir e
reparar os problemas que todos nós sofremos na sociedade atual. Eles apenas
confessam, em última análise, os problemas privados individuais e bastante íntimos”,
disse o polonês. Ele lembrou que para Alain Ehrenberg, sociólogo francês, a
revolução pós-moderna começou numa quarta-feira à noite, num outono da década
de 1980, quando uma certa Vivienne, uma mulher comum, na presença de 6 milhões
de telespectadores, declarou nunca ter tido um orgasmo durante seu casamento,
porque seu marido, Michel, sofria de ejaculação precoce. Repentinamente, na Ágora,
as pessoas começaram a confessar coisas que eram a personificação da privacidade, a
personificação da intimidade. “Então, a Ágora foi conquistada, não pelos regimes
totalitários, mas exatamente pela privacidade, por coisas que anteriormente eram
privadas”, insistiu Bauman.
Redes e laços sociais
Ele encerrou sua entrevista abordando as diferenças entre redes e laços sociais, e a
tensão entre liberdade e segurança: para alcançar uma tendemos a abrir mão da
outra. Ele lembrou que, quando jovem, não tinha o conceito de “redes” e sim de
laços humanos, de comunidades. A comunidade precede o indivíduo e é difícil entrar
e sair dela, diferente da rede. A rede é feita e mantida viva por duas atividades
diferentes. Uma é conectar e a outra é desconectar. “E eu acho que a atratividade
do novo tipo de amizade, o tipo de amizade do Facebook, como eu a chamo, está
exatamente aí: que é tão fácil de desconectar”, disse o pensador.
Edgar Morin e a crise da globalização
A presença de Edgar Morin no palco do Fronteiras demonstrou como a lucidez e a
vitalidade física que o caracterizam não diminuíram apesar das nove décadas
completas no último dia 8 de julho: ele falou em pé durante mais de uma hora,
cativando a atenção de toda a plateia. O antropólogo começou descrevendo uma
série de realidades que hoje estão em crise. Crise econômica, das sociedades
modernas, da sociedade ocidental, das sociedades tradicionais, de desenvolvimento,
crise demográfica, impotência do pensamento para entender o que está
acontecendo. “A crise é da humanidade, que não consegue se tornar humanidade
porque todos os processos que a conduziram a levaram a uma catástrofe”, disse o
conferencista.
Para ele, precisamos não só proteger os estados nacionais, mas criar realidades
supranacionais para tratar dos problemas comuns. A ONU não estaria dando conta de
problemas como a eliminação das armas em massa, da economia ou da biosfera.
Encontramo-nos diante de algo estranho, e é provável que o curso atual da
globalização nos leve à catástrofe.
A probabilidade
Para o francês, se o curso continuar com a força que tem no presente, as
probabilidades serão catastróficas. Mas na história humana muitas vezes aconteceu o
inesperado, o improvável. “A democracia foi um acontecimento improvável que
surgiu em Atenas. No início do século V existiu um enorme império persa que
desejava conquistar Atenas. Mas os cidadãos conseguiram expulsar o gigantesco
exército persa. Tomaram Atenas, queimaram e destruíram. A frota grega preparou
uma armadilha e afundou os navios persas. Atenas se restabeleceu e, 40 anos depois,
surgiu a democracia”, disse Morin. A democracia, através de todos os percalços
históricos, se transformou numa força em escala mundial; portanto, o improvável
pode acontecer.
Entre os exemplos de improváveis que se transformaram em grandes movimentos
provocando mudanças de rumos, Morin lembrou o príncipe Buda, Jesus e o
cristianismo espalhado por Paulo de Tarso, Maomé, mas também os inícios da ciência
e de sistemas como o socialismo.
Desintegração ou metamorfose?
Quando um sistema não consegue tratar seus problemas fundamentais, ou se
desintegra, ou regride e se torna bárbaro, ou cria um metassistema e se
metamorfoseia. Metamorfose, palavra reservada aos insetos, mostra uma
transformação. A larva ganha asas. Cada um de nós, quando está no ventre da mãe, é
uma espécie de animal aquático que não conhece o ar, e ao nascer sofre uma
metamorfose. O planeta, durante milhões de anos, foi coberto por pequenas
sociedades de caçadores sem organização, mas depois os processos recriaram a Terra
e vimos surgir sociedades com belezas e barbáries. A humanidade conseguiu se
metamorfosear para o melhor ou para o pior. A metamorfose só acontece no curso de
um processo que ainda é desconhecido.
Globalizar e desglobalizar
Já houve vozes que se levantaram dizendo que é necessário desglobalizar, pelo
empobrecimento do regional e a perda do sentido comunitário. Para o filósofo, é
necessário ao mesmo tempo globalizar e desglobalizar. Acostumados a um
pensamento binário, é difícil imaginar essa possibilidade, mas ela é necessária. Os
meios de subsistência de um país devem ser preservados. Em certos casos, proteger
as mercadorias com taxas alfandegárias para proteger os trabalhadores da
exploração. É preciso envolver e desenvolver. Devemos conservar a identidade
aceitando o que vem do mundo exterior. O Ocidente trouxe a ideia de democracia,
liberdade, valorização da mulher, mas destruiu sentidos de solidariedade e
comunidade. Um exemplo dado pelo conferencista é o da necessidade de integração
da medicina, onde a medicina moderna leve em conta a medicina milenar da China
ou dos povos indígenas. É necessário integrar das culturas tradicionais qualidades
como a harmonia com a natureza, valores como a cortesia, a cordialidade.
Para harmonizar ambos os movimentos de globalização e desglobalização, seria
necessário um decrescimento ou crescimento negativo do ponto de vista econômico e
energético. “Gastar menos energia. A economia verde, baseada em energias limpas,
deve crescer e tornar as cidades mais suportáveis, reduzindo o tráfico, gerando o
comércio justo. Precisamos de uma economia solidária, que vença o domínio da
perspectiva de ganho”, salientou o filósofo. Para o conferencista, embora haja
iniciativas criadoras, elas estão dispersas e desconexas. Entre os exemplos, ele
lembrou do banco Palmas de Fortaleza, onde o microcrédito contribui para formar
uma cidade de 3 mil habitantes que não tinham condições básicas de vida e agora
vivem muito bem. Lembrou também da formação de uma orquestra na Venezuela
para combater a criminalidade juvenil. Iniciativas transformadoras, mas dispersas.
O bem-viver
Morin lembrou que para Rousseau educar é ensinar a enfrentar os problemas da vida,
aprendendo a enfrentar as incertezas, a vencer as armadilhas do conhecimento.
“Precisamos reformar o pensamento, e naturalmente o pensamento político, que as
pessoas aprendam a ter uma nova ideia de mundo. Precisamos reformar nossas vidas
condenadas a ser cronometradas e monótonas”, disse o francês. A vida devia estar
polarizada pelo polo da prosa e pelo polo da poesia. A prosa da vida é o que nos
vemos obrigados a fazer, que nos entristece, nos contraria mas fazemos para
sobreviver. A poesia é o que nos faz viver. Está no amor, na amizade, na comunhão,
no lúdico, na dança, no êxtase. “A felicidade não é possível produzi-la, depende de
condições externas e internas para se realizar. Contudo, uma política pode criar
condições para evitar infelicidade, pode favorecer a abertura ao crescimento poético
da vida”, insistiu o conferencista. Ele lembrou que para Hegel compreender a outra
pessoa é compreender a complexidade do ser humano.
Morin preferiu a ideia do bem-viver à ideia de bem-estar. “Claro que o bem-estar
materializado é útil, mas há uma parte de nossa pessoa que deseja mais que o bemestar
material. Algo que nos permite estar mais em harmonia com o mundo e
conosco”, afirmou o antropólogo. Há um mal-estar que está sendo vivido no bemestar
material, por isso é preciso saber viver poeticamente.
Para Morin, tudo o que foi tentado em pequenas comunidades fracassou, exceto
quando estavam unidos por ideias religiosas e rituais. Comunidades se desintegraram
porque havia um ambiente externo desfavorável sim, mas também porque as pessoas
não conseguiam se entender. “Tudo deve ser reformado ao mesmo tempo, todas as
reformas são intersolidárias. Esse processo poderá permitir a criação de um novo
caminho e fazer com que o antigo caminho se desintegre. São as únicas condições de
chegar a algo que dê as possibilidades de seguir a aventura humana”, disse o
conferencista.
Morin encerrou sua conferência lembrando que hoje toda a humanidade está
embarcada nos mesmos problemas. “Hoje não é uma questão de defender privilégios
e esquecer os que sofrem, é defender a causa de toda a humanidade, e não há uma
classe privilegiada que vai segurar a salvação. Digo para os jovens que eles têm uma
causa mais justa, mais bela e maior que aquela pela qual estávamos dispostos a
sacrificar nossa vida. A esperança não é um certeza. Antes a esperança era uma
crença e resultou uma ilusão. Se existir a esperança, temos o fermento necessário
para toda transformação, para alcançar uma metamorfose”, conclui o filósofo.
No breve debate, Edgar Morin foi perguntado pelo lugar do Brasil nessa metamorfose
e sobre os valores e projetos de vida pessoais. Ele respondeu que o Brasil tem um
lugar privilegiado pela sua riqueza de biodiversidade humana e natural. “Um lugar
onde o humanismo se pode desenvolver, país onde a criatividade é possível, onde a
aventura humana pode se desenvolver. Ao ver isso, penso que poderia me instalar no
Brasil”, brincou o conferencista. Sobre os valores mais importantes, ele assinalou o
amor e o conhecimento, e estes mesmos são seus planos aos 90 anos, continuar
trilhando esse caminho.